Chegada ao mundo de um novo sempre enseja movimentos e muita preparação
Os nove meses de espera pelo nascimento de Maria da Luz foram de prazerosa preparação: o enxoval, a escolha do nome, os projetos, a arrumação da casa, o reordenamento dos horários... Uma grande festa! A chegada ao mundo de um novo sempre enseja movimentos e muita preparação. O parto pode até ter data e hora marcadas, a mamãe pode optar entre parto natural ou cesariano. É possível um até uma doula acompanhar todo o processo. Tudo conspira a favor de uma atmosfera de alegria, paz e felicidade para o nascimento do novo ser.
Nascida em 02.11.2020, a chegada de Luz coincide com a celebração do dia de finados. Quiçá para anunciar a todos e todas, inclusive à recém nascida, que o oposto de nascimento é morte e que um dia a vida, este espaço temporal entre nascimento e morte, inexoravelmente se esvai.
Diferentemente do nascimento, a morte é tema sempre evitado e proscrito. Quem ousa cuidar da sua preparação? Melhor não falar do assunto, evitar o tema, fingir que ela não existe. Mas se é verdade que a boca fala do que o coração está cheio, a morte é tema recorrente em modos metafóricos do nosso linguajar: “tá pela hora da morte!”, “tô morta com farofa”, “cala boca já morreu”, “tô morrendo de medo”, “morto de fome, frio ou calor”.
Implacável e alheia ao que se diz ou se pensa a seu respeito, a morte rompe o seu ostracismo e comparece assiduamente, fazendo-se lembrar, por crentes e incrédulos.
O ciclo da vida só se completa com a morte. É ela quem dá à vida seu significado e sentido profundo. Preparar-se para ela e compreendê-la não a antecipa para os que assim o fazem. Vida e morte são indissociáveis. Felizes os que vivem intensamente a vida, com a certeza que a mesma é efêmera.
Conscientes da nossa finitude é que compreenderemos a nossa infinitude. O ciclo da vida biológica tem princípio e fim: nascemos, crescemos e morremos. E neste espaço de existência somos capazes de realizar obras e feitos que se eternizam, oxalá para o bem de outros viventes.
Maria da Luz dá de ombros, na pureza dos seus poucos dias, sob os acordes de Gonzaguinha, que num profetismo artístico avisa cantando que não há tempo a perder. A vida, que “é bonita, é bonita e é bonita” urge ser vivida com intensidade. A este refrão até os mortos farão coro, mortos de tanto viver.
*Padre Alfredo Dórea é arcebispo da Igreja Anglicana Tradicional do Brasil. Graduado em filosofia e teologia. Mestre pela Universidade Gregoriana de Roma. Atua no diálogo interreligioso, combate às violências, discriminações e preconceitos, defesa dos direitos humanos e das pessoas mais vulneráveis e empobrecidas, sobretudo as que vivem com o HIV/AIDS.