Lamentável perceber, que duas décadas depois a AIDS ainda encontra quem a rotule como doença maligna
As redes sociais divulgaram recentemente, quiçá sob quais interesses, vídeo do Congresso Diante do Trono, de 2016, no qual Ana Paula Valadão, dita pastora e cantora gospel afirma, entre outras barbaridades: “Taí a Aids para mostrar que a união sexual entre dois homens causa uma enfermidade que leva à morte e contamina as mulheres, enfim... Não é o ideal de Deus”. Imediatamente a Aliança Nacional LGBTI+ entendeu que tão perversas afirmações “beiram ao absurdo, extrapolando a liberdade religiosa e de expressão, tornando-se um discurso odioso, fanático e amplamente desproposital, com consequências potencialmente desastrosas, principalmente para quem a segue".
Ana Paula Valadão vocifera com chavões dos anos 80, quando a AIDS foi rotulada como “peste gay”, que configurou e fortaleceu a idéia de doença contagiosa, incurável, mortal, provocada pelo castigo divino. A sociedade perplexa, de então, passou a evitar a pessoa vivendo com HIV AIDS; a exclusão era reflexo do ato punitivo social pelas supostas transgressões praticadas pelas pessoas soropositivas.
Lamentável perceber, que duas décadas depois a AIDS ainda encontra quem a rotule como doença maligna, que reascende preconceitos e gera condutas e políticas discriminatórias. Tudo isso em nome da “fé”.
Minha velha mãe dizia que “quem tem sua boca diz o que quer”, mas até ela concordaria que as ameaças à vida precisam ser acauteladas. A partir do momento em que as afirmações mentirosas ganham força, muita gente tende a acreditar piamente nelas, transformando-as em verdades absolutas. Quando saídas de bocas de lideranças religiosas, tais inverdades tornam-se dogmas, que não permitem investigação, dúvida ou apuração. Pela confiança depositada em tais lideranças, as pessoas acreditam e assim expõem a risco a sua e outras vidas.
Independente da sua orientação (e não opção) sexual, qualquer pessoa soropositiva, com carga viral indetectável, não transmite HIV. Sujeitos soronegativos que fazem a Profilaxia Pré Exposição (PrERP), também não contraem o HIV. Tais avanços da ciência, com apoio da sociedade civil, não podem ser desautorizados por fanatismos religiosos que levam à morte.
Caso aceitem com verdade as afirmações mentirosas da cantora pastora, pessoas irão crer que pelo fato de serem de orientação heterossexual poderão se relacionar sem proteção e assim correm grande risco de contrair o HIV. A heterossexualidade será razão para o não uso de preservativos, bem como para a não realização do teste, hoje já tão popularizado e acessível na forma de auto-teste. As estatísticas demonstram que mais de 80% das mulheres soropositivas foram infectadas por seus maridos, muitas talvez ludibriadas mais uma vez por Ana Paula Valadão, que prega e canta: “o sexo seguro, que não transmite doença nenhuma, é a aliança do casamento”. Oxalá suas afirmações levianas possam ser tipificadas como crime de lesa humanidade, para que a punição corrija este e previna outros pronunciamentos e práticas de intolerância, discriminação e preconceito que tema a ver com tudo, menos com os princípios bíblicos e evangélicos.
* Padre Alfredo Dórea é arcebispo da Igreja Anglicana Tradicional do Brasil. Graduado em filosofia e teologia. Mestre pela Universidade Gregoriana de Roma. Atua no diálogo interreligioso, combate às violências, discriminações e preconceitos, defesa dos direitos humanos e das pessoas mais vulneráveis e empobrecidas, sobretudo as que vivem com o HIV/AIDS.